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Mostrando postagens com o rótulo Memórias

Mino

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Após um ano inteiro sem contato, enfim uma visita ao meu irmão mais velho e sua família, que na época moravam em outro estado aqui do sudeste brasileiro.  Viagem de ônibus, quase oito horas de estrada. Chego ao portão. — Ô de casa! Uma criaturinha marrom, minúscula, de pernas finas e de movimentos ágeis corre na minha direção, latindo e pulando freneticamente, num misto de alegria e zanga. Na dúvida de não ser alegria, fiquei esperando que meu irmão viesse segurar a fera. Pode ser do tamanho de um rato, mas ainda assim tem dentes, muitos dentes por sinal. Meu sobrinho, outra criaturinha miúda, extremamente ativa, alegre e de olhos enormes vem também até o portão, saltitando e correndo, deixando o cãozinho mais alvoroçado do que sua estrutura parece aguentar. Depois dos beijos e abraços rituais em situações como essa, puxo conversa com o pequeno sobre o seu amiguinho, que a essa altura parou de se tremer e lambia uma das patas com interesse: — Ah, que gr...

Re-Constitución

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Constitución foi uma das cidades mais amistosas pelas quais passamos em nossas férias no Chile. Também foi umas das cidades mais devastadas pelo Tsunami, em 2010. Chegamos à noite, como de costume, procurando lugar para dormir. Depois de muito andar, encontramos a pousada do Bom Velhinho ― Hostel Maule era o nome oficial, mas raramente lembramos disso. Preenchemos a ficha e fomos para o quarto. Era o quarto mais limpo e arrumado que vimos durante essa viagem. Tudo novo, papel de parede, piso, tinta, móveis, eletrônicos, lençóis, tudo parecia ter acabado de sair da loja. No dia seguinte, fomos tomar café na sala comum e o dono da pousada ficou conversando conosco. Ele nos relatou como foi estar no meio do Tsuname, com as ruas se retorcerem como serpentes. A sua casa foi totalmente destruída, por isso tudo era tão novo. Mostrou-nos uma foto das suas ruínas em uma revista.  Após essa imagem descritiva, saímos pelas ruas, observando o contraste do que já havia de no...

Alameda

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As estradas do Chile por onde passamos não são bem o que podemos chamar de comuns. Escolhemos uma rota alternativa, que nos desse a visão litorânea. Para isso, tivemos que nos colocar em pequenos trechos não muito apropriados para um carro de cidade. Esses incertos "desatalhos" nos proporcionaram várias sensações, entre elas, medo, pois passávamos longos trechos sozinhos no meio do nada, sem ter como nos comunicar com a civilização; também nos deram muitas paisagens belíssimas, e outros tantos momentos de pura descontração. Mas antes de contar a parte dos caminhos alternativos, devemos dizer como chegamos a ter, por contrato temporário, nosso pequeno e bem usado Toyota. O aluguel: Chegamos à locadora. Os funcionários estavam todos eles resumidos a apenas quatro. Um negócio pequeno, de família, percebia-se. O primeiro choque foi ter que assinar um cheque em branco como garantia, caso a gente destruísse o carro, o que não seria muito difícil, visto as condi...

Cardápio sinestésico

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Depois da euforia inicial com as novas sensações gastronômicas das nossas férias no Chile, fomos tentar novas sensações, com outros sentidos, subindo o Villarrica. Esse pedacinho do Chile esteve em pânico a última vez em 2010 (um ano antes de nossas férias), por causa do aumento da atividade. Antes disso, um susto em 1984, mas já estavam preparados devido ao evento de 1971, quando uma grande erupção causou uma das maiores tragédias da região. Aprenderam a lidar com as emergências. Mas agora, nós estávamos lá, no pé da grande montanha, no meio de um dos rios de lava seca que o fogo de 71 esculpiu. Estávamos decididos a chegar até La Casa del Diablo, uma de suas crateras extintas mais visitadas. A caminhada tinha começo agradável, muitas árvores, flores, plantas coloridas e muitas placas indicavam que um dia, naquele lugar, houve animais de pequeno, médio e até grande porte. Mas o que encontramos em abundância foram besouros, daqueles grandes, negros, brilhantes e barulhento...

O típico da diferença

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Há coisas na vida que você precisa aprender antes de dizer que conhece outras terras, outras pessoas, outros sabores, outras coisas... Eu , por exemplo, tive que aprender o que é de verdade água com sal e açúcar no jantar, que duendes só existem na casa da Xuxa, que CD só toca de um lado, que Paulo Coelho e Hebe Camargo são mais apreciados em shows de Stand Up do que em suas carreiras, que ovo faz mal, faz bem, e faz mal de novo, que andar de bicicleta é perfeitamente esquecível, que barata pode sofrer de depressão, que mulher na presidência é como ter uma mulher na presidência, que infinito é muito na gramática e pouco na matemática, que banho de chuva é sempre mais gostoso quando se é criança, e que o Mote con Huesillo, do Parque Metropolitano de Santiago, é ruim demais. Ao longo de toda a subida da estrada do Parque, que possibilita aos transeuntes uma vista deslumbrante da cidade lá embaixo, notamos que as lixeiras em todo os cantos estavam repletas de latas de pêssego em...

Augustin

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Lá estavam, todos ao redor da nuvem branca. As cores eram quase imperceptíveis, tal era a luminosidade da cena. As asas prontas para alçar voo, logo que desejassem. Quando, do meio da fumaça, surge uma figura, aparentemente forte, alta, pele negra, olhos muito atentos e... ― Aqui é álcool ou gasolina?  O ronco do motor assustou todos os pombos, que beliscavam suas migalhas ali pelo posto de combustível. O homem se aproxima, curva o corpo, põe as mãos na janela do carro e, com sotaque que mais parecia um nordestino tentando falar espanhol, nos dirige sua ensaiada cortesia:  ― Boa tarde, meu nome é Augustin, bem-vindo ao posto Decano , estou aqui para servi-lo, espero que tenha um ótimo dia.  Uso as vírgulas aqui por rigor gramatical, mas em favor da verdade mais verdadeira, não houve sequer separação fonética das sílabas. Toda a frase parecia uma única palavra. Resultado: "Sorry, can you repeat please?"  Augustin é do Haiti. Está em Santiago há ...

Na veia

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― Foi lá que eu conheci. No Brasil. Uns amigos da faculdade me ofereceram uma pequena quantidade. Depois disso, nunca mais pude me esquecer. Fiquei viciado. Ah, o Brasil, e suas belezas inigualáveis! As praias que não conheci, as mulheres... sim, mulheres muito bonitas, se me permite dizer. É com todo o respeito! Mas aquela sensação ao provar o pó da paçoca, que eu praticamente injetava de tão ansioso que ficava para consumir o quanto achasse... aquela sensação eu não poderia ter em lugar nenhum do Chile. Depois da tentativa frustrada de almoçar Ceviche no primeiro dia em Santiago, a gente se deparou com um outro local popular chamado Mercado Central . O prédio por fora tinha bom aspecto e o movimento intenso indicava que lá acontecia algo digno de ser compartilhado. Entramos.  Estávamos certos. Muitas pessoas passando o domingo comendo e bebendo por ali. Era um salão enorme, de teto alto e antigo, um tanto danificado e empoeirado, cercado de restaurantes de todos os...

Sugestão do chefe

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Acordamos. Nosso primeiro dia em Santiago, Chile. Saímos à rua com cara de turista perdido. Procurávamos algo para comer, pois era quase meio dia e não havia nada em nossos estômagos desde que embarcamos no último voo. Um longo caminho... Parados numa esquina, mapa nas mãos, olhar por cima dos carros em busca de letreiros que anunciassem um restaurante. Um senhor passa por nós e, a poucos passos, se volta: ― ¿Yo puedo ayudarlo?  ― Buscamos un lugar para comer.  O chileno aponta para uma construção à frente, atravessando duas largas avenidas e passando por uma ponte. Disse que lá era bom e barato, que no barzinho atrás de nós era caro, numa proporção de preço que conferia a um cliente aqui o valor que se serviam 100 clientes lá. Ora, era a indicação de um habitante! Fomos conhecer.  Era um mercado de frutas chamado La Vega, mas quase tudo estava fechado por ser domingo. Somente no segundo piso, que era o local onde se concentrava a "praça de alimen...

Entrevista

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A fila se forma de maneira rápida e se dissipa com a mesma velocidade do lado de fora. Os agentes, altamente treinados, organizam com vontade toda aquela multidão e a empurra para dentro do edifício. Celulares, aparelhos eletrônicos de qualquer tipo, objetos cortantes, pontiagudos, armas de fogo, terroristas portáteis, tudo fica do lado de fora. Lá dentro, muita gente para organizar e mais ainda para ser organizada. Fila, muita fila: para passar no detector de metais, para chegar ao primeiro balcão, deixar o passaporte, depois pegar a senha, depois para esperar. Um amontoado de gente que teve de agendar o atendimento exatamente no mesmo horário (isso ainda não entrou numa era moderna mais inteligente, paciência!); um atrás do outro ainda para marcar as digitais e, enfim, a fila de espera para a entrevista.  Os momentos em formação militar são os mais lembrados. Observa-se tudo: o comportamento dos funcionários de crachá e rádio na mão; os cinturões que marcam e organizam...

Volte sempre

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E brasileiro é um povo que trabalha feliz, sorridente, esbanjando simpatia, mesmo quando em condições difíceis, salários baixos e pouco reconhecimento. É uma mentira deslavada. Vai lá no Maranhão para ver se você acha esse povo aí. Conta-se nos dedos de uma só mão os que apresentam qualquer uma dessas “qualidades brasileiras”. E por ironia, o mais abrasileirado nesse quesito que encontrei foi um suíço, o dono da pousada. Durante a minha estadia em São Luís, um bocado de serviços foram oferecidos, desde a pessoa que guia você pelos caminhos do paraíso, como uma Beatriz mal humorada, até a pessoa que lava seu carro enquanto cai uma tempestade de poeira por cima. Interação com um bocado de trabalhadores, daqueles que sabem o que fazem, e não fazem, dos que não sabem, e fazem assim mesmo, e derivações dessa combinação; de tudo, ao menos um pouquinho, pode-se ver e sentir como acontece: ― Bom dia, amigo! ― diz o visitante ao entrar no quiosque da praia. ― O que você quer...

Cotilédones

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Em uma noite assim, não precisamos da habitual fogueira no terreiro. É só esperarmos a chegada dos vizinhos mais próximos, a Dona Nena e o Seu Moraes. Eles moram longe, não sei bem o quanto, mas canso de tanto andar no meio do mato quando vamos visitá-los. Ela é calada, tem sotaque engraçado, parece que mistura nossa língua com a dos índios. Já ele é falador, um linguajar rápido, meio embolado, "matraca mais do que a nêga do leite", como diz mãe. Meus irmãos e eu gostamos de brincar soltos quando a noite está clara assim, correndo de um lado para outro. Mas quando nosso pai se acomoda ao lado dos nossos vizinhos, paramos para ouvir. Ele tem as melhores histórias, tem o melhor jeito de contar, olha cada um para ter certeza de que tem nossa atenção. Nós ficamos sentados, formando uma roda que, de início, é animada com piadas e passagens engraçadas. ... foi quando Dona Zefinha perguntou, olhando pro rádio: "ô seu Lauro, cumé qui si faz pra colocá essis homi tocadô a...

Discurso em homenagem

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Era o ano de 1996. Bill Clinton se reelegeu presidente. O Brasil trouxe dos Jogos Olímpicos, em Atlanta, quinze medalhas. Fernando Henrique aprovou leis contra o fumo em ambientes fechados. E foi também o ano de minha formatura. Todas as outras coisas que aconteceram ficaram em algum lugar, mas isso veio comigo e é assim que me lembro desse ano. Foi um dia irreal, como um daqueles que parecem passar em câmera lenta. Os preparativos, a agitação das pessoas, os detalhes... Tudo girando numa lâmpada incandescente gigante cheia de óleo aromático. Eu e minha família nos arrumando ao cair da tarde e nos dirigindo para o local onde seria realizada a cerimônia de formatura. Olhava para os meus filhos e meu marido sentados a minha frente, nas cadeiras reservadas. E nós, a turma de formandos, juntos, sentados do outro lado. Era um orgulho imenso ver que minha família estava lá para me ver, testemunhava o que por vezes nem eu acreditava: eu havia conseguido. Senti como se toda a minha...