Cotilédones


Em uma noite assim, não precisamos da habitual fogueira no terreiro. É só esperarmos a chegada dos vizinhos mais próximos, a Dona Nena e o Seu Moraes. Eles moram longe, não sei bem o quanto, mas canso de tanto andar no meio do mato quando vamos visitá-los. Ela é calada, tem sotaque engraçado, parece que mistura nossa língua com a dos índios. Já ele é falador, um linguajar rápido, meio embolado, "matraca mais do que a nêga do leite", como diz mãe.

Meus irmãos e eu gostamos de brincar soltos quando a noite está clara assim, correndo de um lado para outro. Mas quando nosso pai se acomoda ao lado dos nossos vizinhos, paramos para ouvir. Ele tem as melhores histórias, tem o melhor jeito de contar, olha cada um para ter certeza de que tem nossa atenção. Nós ficamos sentados, formando uma roda que, de início, é animada com piadas e passagens engraçadas.

... foi quando Dona Zefinha perguntou, olhando pro rádio: "ô seu Lauro, cumé qui si faz pra colocá essis homi tocadô aí dento dessa caxa?".

Mas logo vem as histórias de terror. "Todas reais", dizem. Algumas são contadas de geração em geração; outras, vividas pelos próprios narradores. São essas autenticadas que dão mais medo. Nem mesmo explicações científicas posteriores amenizam a sensação sobrenatural, como a que contaram sobre o fogo-fátuo, a tal nuvem-fantasma que seca os animais da floresta. E é uma dessas, vividas pelo meu pai, que temos hoje:

― Lá no Crato, há uns dez anos, aconteceu um caso de lobisomem. O povo até hoje fala. Desconfiavam do finado Vicente Fino. Escutem...

A palavra "finado" já causa um arrepio na espinha e começa a dificuldade em largar o assento.

― ...Zé de Bidias me contou que o finado Vicente, nessa época ainda menino, levava o almoço para o pai, lá na roça onde trabalhava. Ia sempre reclamando do que havia comido, quase sempre um punhado de farofa de pão, feita só com gordura do toucinho. Um dia, alguns passos de onde deveria chegar, parou. Sentou-se próximo a um arbusto seco, tirou o prato da rodilha e comeu os poucos pedaços de couro de porco que encontrou, sem pensar no que fazia, só queria saciar a fome que ainda sentia e saber como era o gosto daquilo. Seguiu o caminho arrependido, pensando no que diria a seu pai e resolveu mentir, dizendo que a mãe só mandou o baião-de-dois porque um homem almoçou lá na casa deles. Ela estava grávida de sete meses. Morreu assassinada pelo marido que pensava estar sendo traído. Levou sete facadas. Na agonia da morte, amaldiçoou o filho Vicente, dizendo que, ao se tornar homem, uma fera iria tomar seu corpo: "você, filho ingrato, vai correr as sete noites de lua cheia atrás de carne, igual a um selvagem faminto, tendo o uivo como alívio de sua dor. E assim será durante sete anos". 

Pronto! Ninguém mais sai para ir ao banheiro sozinho. A casa, à luz de candeeiro, cheirando a querosene, com sombras para todos os lados, é o nosso labirinto de medo o resto da noite. E na manhã do dia seguinte, será um brigueiro. Certamente faremos xixi na rede de novo. Mãe tentará nos convencer a não ouvir mais essas histórias. Em vão. Sem televisão, livros, rádio ou qualquer outro acessório moderno para transformar crianças travessas em anjinhos de pedra, descobrimos como ter tudo pela imaginação, mesmo que isso inclua alguns monstros morando nas nossas paredes enquanto ainda é noite.

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Definição de cotilédones, segundo a Wikipédia:

Cotilédones são as primeiras folhas que surgem dos embriões das espermatófitas, irrompendo durante a germinação das sementes.

São estruturalmente diferentes das outras folhas, uma vez que cumprem uma função especial para a subsistência deste ser vivo, contribuindo com suas reservas de nutrientes para alimentar a plântula em desenvolvimento, enquanto esta não pode ainda produzir a quantidade suficiente de nutrientes através da fotossíntese.

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