Discurso em homenagem


Era o ano de 1996. Bill Clinton se reelegeu presidente. O Brasil trouxe dos Jogos Olímpicos, em Atlanta, quinze medalhas. Fernando Henrique aprovou leis contra o fumo em ambientes fechados. E foi também o ano de minha formatura. Todas as outras coisas que aconteceram ficaram em algum lugar, mas isso veio comigo e é assim que me lembro desse ano.

Foi um dia irreal, como um daqueles que parecem passar em câmera lenta. Os preparativos, a agitação das pessoas, os detalhes... Tudo girando numa lâmpada incandescente gigante cheia de óleo aromático. Eu e minha família nos arrumando ao cair da tarde e nos dirigindo para o local onde seria realizada a cerimônia de formatura.

Olhava para os meus filhos e meu marido sentados a minha frente, nas cadeiras reservadas. E nós, a turma de formandos, juntos, sentados do outro lado. Era um orgulho imenso ver que minha família estava lá para me ver, testemunhava o que por vezes nem eu acreditava: eu havia conseguido.

Senti como se toda a minha vida tivesse valido a pena. Tudo o que passei desde a primeira lembrança de minha infância até aquele momento. Não sabia separar em meu coração a felicidade por ter realizado dois sonhos distintos que alimentei desde sempre, ter uma família e ter um grau de conhecimento que me permitisse entender melhor o meu pequeno mundo. Talvez porque os dois desejos estavam ali na minha frente, vivos, como um casamento perfeito entre azedo e doce.

Foi uma comemoração muito simples, assim como eram simples minhas ilusões, meus ideais, meus pensamentos.

Minha vida.

Venho de família humilde, numerosa e enraizada no nordeste brasileiro. Eu, a sexta filha de um total de onze gestações bem sucedidas, fui a criança mais magra e menos desenvolvida fisicamente de nossa casa. Com os ossos salientes e cabelos muito compridos, só tinha em mim curiosidade, sonho e um mundo de imaginação.

Meus pais eram pessoas rigidamente tradicionais, para não dizer, antiquados. Acreditavam nos antigos valores morais, na obediência inquestionável, na religião e na concepção de que mulher nasceu para servir ao lar. Por isso, mesmo meu pai sendo um homem instruído para os padrões locais, não me permitia frequentar a escola, nem ao menos permitia a alfabetização, para que eu não escrevesse aos namorados ou perdesse tempo com futilidades sociáveis. Isso tudo era uma inutilidade, “uma perda de tempo aprender algo que você não vai usar, uma mulher não precisa disso”. Eu, como mulher, inferior, só igualada às fêmeas parideiras que tínhamos no curral, com a serventia exultante da procriação e da espera pela morte, não escapava à lógica de seu raciocínio. Para ele, as prendas domésticas é que equipavam uma mulher com o que havia de melhor em relação à satisfação de viver. Era assim que eu tinha de ser feliz, com as delimitações de uma dona de casa analfabeta, alienada e cheia de filhos. 

Mas, como eu ainda não percebia esse pensamento tão maciçamente solidificado na cabeça de meu pai, quando fiz dez anos, pedi para que ele me deixasse estudar. Nem cheguei a entender o porquê dele ter me negado. Mal conseguia acompanhar o que ele queria dizer com “filha minha não vai ficar mal falada” – mal falada porque vai aprender, vai ter instrução? Na minha ingenuidade, isso não fazia o menor sentido. Mas eu já sabia, já compreendia que não ir à escola iria me fazer mal. Já sentia que isso me faria uma pessoa solitária, cada vez mais presa na minha ignorância. 

Percebendo meu desejo de aprender e minha frustração diante de um “não”, um tio de minha mãe, que se chamava Ageu, aproveitando as poucas ausências de meu pai, ensinou-me o nome das letras. De um jeito todo particular, começou a explicar como formar sílabas e, consequentemente, a formar as palavras. Usava como material didático jornais velhos que serviam de embrulho das compras. 

O tio Ageu já era um senhor de cabeça branca quando começou a vogar a meu favor, insistindo com meus pais que me liberassem para frequentar a escolinha. Não teve sucesso. Assim, seguiu minha alfabetização clandestina até o dia em que minha mãe descobriu. Nesse dia, meu tio e eu fomos castigados. Ele foi enxotado de casa como um cachorro vadio e eu apanhei que nem gente grande. 

Eu costumava apanhar por muitos motivos, apanhava mais ainda quando não tinha um. Minha mãe instigava meu pai a me bater por qualquer coisa que ela achasse que eu tinha feito; por qualquer intenção maligna que ela achasse que eu escondia. Mas tive um apoio. Minha madrinha conversava muito comigo a respeito desse tratamento que eu recebia. O que poderia ter se transformado em ódio e revolta, transformei em mágoa profunda. Era uma mágoa amordaçada e dolorida, que me maltratava também, mas hoje sei que foi o melhor que pude fazer por mim. Eu não tinha outra boa chance de crescer como uma pessoa aceitável no meio social. 

Agora estou aqui, relembrando o dia em que finalmente consegui. Nem posso desejar que meus pais estivessem presentes para dividir o orgulho. Capaz de estarem me maldizendo por ter insistido na desobediência. Precisei passar dos 40 para ser uma filha completa em má conduta. Precisei passar dos 50 para entender como minha vida andou por aí, comigo insistindo, apanhando, mas nunca ficando no meio do caminho aos prantos. Continuava, dava um jeito de chegar. E acho que ainda será assim por mais um tempo. Nenhuma idade escapa do anseio de se continuar a caminhada. Aprendendo e evoluindo. 

(Autora: Maria da Soledade)



Comentários

  1. Interessante ler esse conto, e fico pensando em quantas histórias interessantes podemos conhecer se tirarmos um tempinho para ouvir as pessoas.
    Nina continue ouvindo e escrevendo. Você faz isso muito bem!
    Bj
    Rose

    http://amigasqueengordam.blogspot.com/

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