Entrevista


A fila se forma de maneira rápida e se dissipa com a mesma velocidade do lado de fora. Os agentes, altamente treinados, organizam com vontade toda aquela multidão e a empurra para dentro do edifício. Celulares, aparelhos eletrônicos de qualquer tipo, objetos cortantes, pontiagudos, armas de fogo, terroristas portáteis, tudo fica do lado de fora. Lá dentro, muita gente para organizar e mais ainda para ser organizada. Fila, muita fila: para passar no detector de metais, para chegar ao primeiro balcão, deixar o passaporte, depois pegar a senha, depois para esperar. Um amontoado de gente que teve de agendar o atendimento exatamente no mesmo horário (isso ainda não entrou numa era moderna mais inteligente, paciência!); um atrás do outro ainda para marcar as digitais e, enfim, a fila de espera para a entrevista. 

Os momentos em formação militar são os mais lembrados. Observa-se tudo: o comportamento dos funcionários de crachá e rádio na mão; os cinturões que marcam e organizam o povo cada um no seu quadrado; as expressões das pessoas, que descrevem tédio, ansiedade, cansaço... Quase que se ouve de alguns os pensamentos (muitos inapropriados para se dizer aqui), mas que, certamente, são capitados por todos os presentes na sala, inclusive os entrevistadores. 

Particularmente o meu pensamento foi: não seja aquele ali, com cara de caixinha de areia usada, que vai me entrevistar, não seja aquele ali, não seja...

― Senhora, cabine três, por favor.

... 

(Este trecho da narrativa foi cortado por requisição da censura do autor. Para reproduzir o conteúdo não divulgado, basta arremessar a substância da tal caixinha usada em alguém e aguardar.) 

Que fazer? Posso fingir que não pensei nada a respeito, mas ele, o entrevistador, intuitivamente já tinha percebido tudo, e não estava escondendo o descontentamento. 

― Bõm djia. Passaporrtchi porr favorr. ― disse sem tirar os olhos da tela do computador. 

Que dificuldade! Serei entrevistada de pé, por uma pessoa sentada a minha frente, usando um aparelho reprodutor de voz robótica, com sotaque de norte-americano, através de um vidro furado na altura do meu umbigo. Tudo o que eu precisava para me sentir confortável, em pleno estado de tranquilidade. 

― Quãntos djias vai ficarrem Estados Unidos? 

― Não entendi. Pode repetir? 

Veio aquela cara de caixinha de areia novamente, só que dessa vez os olhos foram para o teto, numa expressão mais acentuada de que eu estava, definitivamente, aborrecendo-o. 

― Tênm fillhos? 

― Não. 

― É cassada? 

― Não. 

― Quêm vai pagarr suas despessas? 

Entrego-lhe uma carta do meu empregador que explica quem pagará minhas despesas. A carta está em inglês. Foi o suficiente para o homem se descontrolar. Não entende porque eu não estou na fila para os falantes da língua inglesa, e fica mais furioso quando explico que eu não falo inglês. Muito difícil para ele notar a carta foi redigida por um norte-americano?

Agora, nós dois com cara de caixinha. Ele conseguiu me irritar. Mandei tudo para os quintos e comecei a corresponder no mesmo tom de desprezo: 

― Falla Engllês? 

― Deveria? 

― Do you speak English? What are you thinking? (E mais um monte de frases em tom de recriminação). 

― Again: vôcê falla Engllês? 

― Já disse que não! 

Observa-me por uns instantes, sem erguer a cabeça, numa expressão de poucos amigos. 

― Bôa viagenn. Na saída pagarr ennvio do correiyo. 

― Passar bem. 

E fui embora sem olhar para trás. Não tive notícias de uma entrevista para conseguir o visto americano mais estranha. E achei sinceramente que me recusariam. Mas agora estou aqui, em New Jersey, contando toda essa história, bebendo chocolate quente e vendo neve pela janela.

**

Comentários

  1. Nina,

    Boa noite!

    Estou gostando muito de suas crônicas, fiz muito esforço para continuar lendo sem parar de rir. meus parabéns!!!
    bjs, CBS

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