Diálogo da relativa grandeza


(...) 


Doril não disse mais nada, qualquer coisa que ele dissesse ela aproveitaria para outra acusação. Era difícil tapar a boca de Diana, ô menina renitente. Ele preferiu continuar olhando o louva-a-deus. Soprou-o de leve, ele encolheu-se e vergo o corpo para o lado do sopro, como faz uma pessoa na ventania. O louva-a-deus estava no meio de uma tempestade de vento, dessas que derrubam árvores e arrancam telhados e podem até levantar uma pessoa do chão. Doril era a força que mandava a tempestade e que podia pará-la quando quisesse. Então ele era Deus? Será que as nossas tempestades também são brincadeiras? Será que quem manda elas olha para nós como Doril estava olhando para o louva-a-deus? Será que somos pequenos para ele como um gafanhoto é pequeno para nós, ou menores ainda? De que tamanho, comparando – do de formiga? De piolho de galinha? Qual será o nosso tamanho mesmo, verdadeiro? 

Doril pensou, comparando as coisas em volta. Seria engraçado se as pessoas fossem criaturinhas miudinhas, vivendo num mundo miudinho, alumiados por um sol do tamanho de uma rodela de confete... 

Diana lambendo os dedos e enxugando no vestido. Qual seria o tamanho certo dela? Um palmo de cabeça, um palmo de peito, palmo e meio de barriga, palmo e meio até o joelho, palmo e meio até o pé... uns seis palmos e meio. Palmo de quem? Gafanhoto pode ter seis palmos e meio também – mas de gafanhoto. Formiga pode ter seis palmos e meio – de formiga. E os bichinhos que existem mas a gente não vê, de tão pequenos? Se tem bichos que a gente não vê, não pode ter bichos que esses que a gente não vê não veem? Onde é que o tamanho dos bichos começa e onde acaba? Qual é o maior, e qual o menor? Bonito se nós também somos invisíveis para outros bichos muito grandes, tão grandes que os nossos olhos não abarcam? E se a Terra é um bicho grandegrandegrandegrande e nós somos pulgas dele? Mas não pode! Como é que vamos ser invisíveis, se qualquer pessoa tem mais de um metro de tamanho? 

Doril olhou o muro, os cafezeiros, as bananeiras, tudo bem maior do que ele, uma bananeira deve ter mais de dois metros... 

Aí ele notou que o louva-a-deus não estava mais na mão. Procurou por perto e achou-o pousado num pau de lenha, numa ponta coberta de musgo. Doril levantou o pau devagarinho, olhou-o de perto e achou que a camada de musgo lembrava um matinho fechado, com certeza cheio de... 

― Quando é que você vai deixar esse bichinho sossegado? Tamanho homem! 

Doril largou o pau devagarinho no monte, limpou as mãos na roupa. 

― Você não sabe qual é o meu tamanho. 

Ela olhou-o desconfiada, com medo de dizer uma coisa e cair em alguma armadilha, Doril estava sempre arranjando novidades para atrapalhá-la. 

― Você nem sabe qual é o seu tamanho – insistiu ele. 

― Então não sei? Já medi e marquei com um carvão atrás da porta da sala. Pode olhar lá, se quiser. 

Ele sorriu da esperada ingenuidade. 

― Isso não quer dizer nada. Você não sabe o tamanho da marca. 

― Sei. Mamãe mediu com a fita de costura. Diz que tem um metro e vinte e tantos. 

― Em metro de anão. Ou metro invisível. 

Ela olhou-o assustada, desconfiada; e não achando o que responder, desconversou: 

― Ih, Doril! Você está bobo hoje! 

(...) 

(Trecho de Diálogo da Relativa Grandeza, de José J. Veiga, em A Estranha Máquina Extraviada)


Comentários

  1. Acho muito interessante os escritos fantásticos, alegóricos. Simplesmente porque dá uma liberdade ao leitor de olhar o mesmo assunto sob vários prismas. Essa é uma vantagem unica da filosofia. Ainda não tinha lido esse conto, os autores da nossa época tem um foco narrativo muito forte, porque misturam modelos de narrativa criando muitas vezes um novo modelo. Essa idéia de olhar o mundo sob a perspectiva de Deus, tipo lá de cima "Senhor dos designios", dos pequeninos e insignificantes humanos. Muitos por verem Deus dessa maneira se tornam até Ateus, mas filosofia a parte, a Biblia descreve Deus de maneira tão diferente...
    Mas olha vou continuar lendo mais trabalhos de José j. Veiga, achei muito profundo! Bjoooo

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    Respostas
    1. Oi, Lila.
      O que eu achei mais interessante nesse texto do Veiga foi justamente o fato de trazer esse assunto sobre nossa significância através da boca de uma criança. Ficou como você disse: profundo, e sem peso. Está suave e agradável, sem discussão ou ponto de vista, somente o que importa saber, que somos minúsculos se compararmos com o TUDO que existe a nossa volta, mas que de forma alguma somos insignificantes.
      Beijos

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