Sai da frente


Você consegue imaginar que alguém seja atropelado por um veículo automotor enquanto atravessa uma passarela, em um dos lugares mais populares do Brasil? Se você é brasileiro, é claro que consegue. No Rio de Janeiro, cidade maravilhosa, onde as tampas dos bueiros alcançam 15 metros, num voo vergonhoso de negligência das autoridades, isso é mais que possível, quase que completamente certo. 

Outro dia, estava lá um cidadão, com sua pasta de negócios, subindo a rampa de uma das passarelas da Avenida Brasil, para chegar em segurança ao seu local de trabalho, que fica do outro lado desse córrego urbano, de leito revolto e poluído. Tinha a cabeça cheia, calculava as mil tarefas do dia para que todas coubessem em oito horas de expediente. Andava apressadamente para não se atrasar, consultando o relógio, prestando atenção ao movimento dos carros, quando de repente... 

― Sai da frente!!! 

E uma buzina estridente grita junto com a voz do motoqueiro, sem capacete, que vem no sentido oposto, numa velocidade que não se pode chamar de cautelosa. Aliás, pensemos juntos: uma moto, num espaço destinado só para pedestres, a alguns metros de altura, com máquinas assassinas passando lá embaixo... O que poderíamos chamar de velocidade cautelosa numa situação dessas? Mas voltemos ao ocorrido. 

O pobre do cidadão quase se joga passarela abaixo nesse momento. Ficou agarrado na grade como um carrapicho, descorado de susto. O treco barulhento passou, sumiu em um segundo, ou dois, nem deu para contar ― as faculdades mentais estavam ocupadíssimas, concentradas na sobrevivência. Meio tonto, solta-se aos poucos das barras de ferro, redescobre como se caminha, um pé, depois o outro, procura a pasta que deixou cair, já consegue andar novamente. Apanha a pasta num canto da grade, abatida, toda imprestável. 

Desconcertado, revoltado, retoma o passo do atraso. Pela cabeça, não mais o assunto de antes. O que pensava mesmo antes de quase virar estatística? Sim! Não! Esqueceu completamente. Nesse momento, avaliava a possibilidade de voltar para casa e desistir de cumprir aquele dia na sua série de responsabilidades. Mas agora estava no fim da passarela. Desistir significava ter de voltar e correr o risco de se deparar com a moto novamente. Para quê? Melhor continuar o rumo do trabalho. Sim! Está se lembrando... Tarefas, muitas tarefas, em expediente de oitos horas. 
...

O motoqueiro já vai longe. Resmungando, enchendo-se de razão, reclamando do paspalho que estava lá, no meio do caminho, quando ele, um homem de bem, sem crime nenhum para contar, dirigia-se ao outro lado da Avenida Brasil para resolver um assunto urgente, urgentíssimo: “Essa gente, só porque anda de pastinha na mão e gravata, se acha dona do pedaço. Esse Brasil tá uma zona mesmo.” 

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