Lição de casa

As crianças refaziam, a perder as contas, o tal círculo que serviria de base para a figura final. Muitos traços tortuosos, por causa da pouca prática nesse tipo de aventura, deixavam dúvidas sobre o que intencionavam desenhar.

A professora orientava que, depois de unir as duas pontas da linha, uma "perninha" começaria a nascer pelo lado indicado na lousa e, assim, teríamos a primeira letra do nosso alfabeto, o que me desanimava bastante, já que teria de presenciar o nascimento de mais vinte e tantas. Sentia-me como um obstetra alterado.


Ao fim do exaustivo exercício, precisava conferir e elogiar o trabalhinho de meus assistidos, Janice e Léo. Um casalzinho simpático que não se suportavam (e quem suportaria?), mas que se tornaram minha sentença, por ter invadido a sala dos professores para descobrir quem era o namorado da professora de francês. Isso porque ela era a única da escola que merecia minha pirraça adolescente. Hormônios descontrolados e imaturidade no mesmo recipiente não combinam, vamos ser sinceros. 

Janice desenhou uma coisa parecida com um biscoito velho, de aspecto estragado. O que deveria ser a "perninha" da letra, mais lembrava uma fumacinha oscilante de mau cheiro que se dirigia para cima, como que para alcançar o seu próprio nariz, tão pertinho da mesa. 

Léo, que na verdade se chama Levir, mas herdou o apelido de uma tia que é doida pelo cantor sertanejo Leonardo, desenhou uma argola meio gelatinosa. Uma obra surreal, certamente. O traço me fez lembrar o de um grande arquiteto famoso que não me lembro o nome agora. 

Todos os dias, depois da minha aula, durante seis meses, eu precisaria estar na cola dessas duas criaturinhas adoráveis, de comportamento mais do que ativo. A intenção era me fazer perceber o quanto se pode aproveitar a criatividade em desenvolvimento próprio e de outras pessoas. Isso foi o que me disseram. Mas o que percebi na época foi o quanto pode ser chato e cansativo um comportamento inconveniente, quando dirigido a mim; e o quanto eu era parecido com esses dois, apesar da distância de idade. 

Certo dia, ajudei-os a pintar um cartaz fixado no corredor que transmitia uma mensagem sobre o aniversário da escola. Só não chegou a ser ato de vandalismo porque a mensagem comoveu os funcionários. As crianças desenharam corações e sóis. Eu tentei desenhar o rosto deles. 

Passamos a ser três cúmplices de traquinagens durante dois meses, pois o tempo de monitoração não durou o que foi previsto. Acho que repensaram essa coisa de quem aprende o quê e viram que, enquanto eu me endireitava, as crianças se corrompiam com minhas ideias descabidas. 

Não cheguei a ver o nascimento de todas as letrinhas e, ao final daquele ano, não vi mais aqueles pestinhas. Voltei a andar com minha turma de despreocupados, compartilhando os desinteresses típicos da adolescência. Ah, e também comecei a investir num novo plano para chamar a atenção da professora de francês. 

**

Comentários

  1. Estava passando e resolvi deixar este poema que lí em um livro do Mário Quintana:

    Bilhete

    Se tu me amas,
    Ama-me baixinho,
    Não o grites de cima dos telhados,
    Deixe em paz os passarinhos,
    Deixe em paz a mim,
    Se me queres
    Enfim,
    Tem que ser bem devagarinho, Amada,
    Que a vida é breve, e o Amor, mais breve ainda.
    (Mário Quintana, Nova Antologia Poética)

    Um beijo da sua sobrinha Isabelle!

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  2. Olá tia,
    vim passando e decidi dexar meu rastro novamente:

    As vezes as pessoas pensam que podem ter tudo o que querem num simples estalar de dedos, nunca é assim. Muitos sonham em uma coisa, casa, uma nova vida, ou até mesmo outros tipos de sonhos (música, esporte, ganhar na mega sena).
    As pessoas nunca param pra pensar:
    "É isso que eu quero! É por isso que eu vou lutar!" Nunca pensam nisso, sabe; é sempre "Ai, como eu queria...!"
    Todos se esquecem de que, se é disso que elas querem, elas devem lutar, mas em vez disso, apenas dexam seus sonho em uma gaveta vazia e escura com uma frase assinada "Quem dera..."

    Moral: todos temos sonhos, sempre o dexamos pra depos, sendo que, se é isso que você quer realmente dve lutar até o fim.

    Tia, é essa a minha reflexão sobre o que já disse, sonhos não caem do céu!
    Um beijo estou morrendo de saudades!!

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