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Mostrando postagens de 2012

Cardápio sinestésico

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Depois da euforia inicial com as novas sensações gastronômicas das nossas férias no Chile, fomos tentar novas sensações, com outros sentidos, subindo o Villarrica. Esse pedacinho do Chile esteve em pânico a última vez em 2010 (um ano antes de nossas férias), por causa do aumento da atividade. Antes disso, um susto em 1984, mas já estavam preparados devido ao evento de 1971, quando uma grande erupção causou uma das maiores tragédias da região. Aprenderam a lidar com as emergências. Mas agora, nós estávamos lá, no pé da grande montanha, no meio de um dos rios de lava seca que o fogo de 71 esculpiu. Estávamos decididos a chegar até La Casa del Diablo, uma de suas crateras extintas mais visitadas. A caminhada tinha começo agradável, muitas árvores, flores, plantas coloridas e muitas placas indicavam que um dia, naquele lugar, houve animais de pequeno, médio e até grande porte. Mas o que encontramos em abundância foram besouros, daqueles grandes, negros, brilhantes e barulhento

Conversa franca

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O primeiro dia no novo trabalho. Você é a pessoa que sabe menos sobre o exercício da nova função. E se depender do colega aí do lado, vai continuar sendo por muito tempo. Ninguém quer gente como você. Aí vem as expectativas: novo emprego, novos aprendizados, desafios... Então vamos partir para a briga e colher as informações necessárias para executar suas tarefas. Mas a luta cansa. Passou-se o dia e o máximo que conseguiu foi reparar que seus sapatos apertam os seus pés e que a impressora emperra se colocar mais que 100 folhas na bandeja. Quando chega em casa, está assim, sentindo-se um lixo, um qualquer de inteligênciazinha medíocre, que não consegue mais concatenar duas informações simples. Pois é claro, quando você quis saber do tal novo índice para concluir sua apresentação, todos lhe responderam prontamente com afirmações desencontradas e sem sentido, mas enfatizaram bem a importância da apresentação e que a economia muda muito. Segundo mês no novo trabalho, você

Lição da vida

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— O senhor está despedido! O pobre homem não acreditava no que ouvia. Tremeu da cabeça aos pés e o nervosismo apoderou-se dele. Quis falar, mas os lábios trêmulos se fecharam, sentindo a língua presa.  — Mas, "seu doutor"...  — Não me interrompa. Eu sei o que é melhor para a empresa. O senhor é um funcionário antigo, seu salário é alto, mas a sua produção é a mesma, se não, menor.  — Mas, ...  — Nem mas, nem meio mas. Cale-se! — e o diretor continuou a dissertação. —Com o seu salário, posso contratar dois universitários, e os inscrevo como estagiários, e fico bem na fita com o presidente. A fila anda! A vida é assim!  O diretor, homem enérgico e prepotente, não parava de gesticular. Sua voz fluía rápida e sequer respeitava o drama vivido pelo pai honrado e trabalhador, e prosseguia:  — O mundo, graças à tecnologia moderna, não tem lugar para pessoas que não produzem acima da sua própria potencialidade...  O funcionário já não mais o escutava

O típico da diferença

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Há coisas na vida que você precisa aprender antes de dizer que conhece outras terras, outras pessoas, outros sabores, outras coisas... Eu , por exemplo, tive que aprender o que é de verdade água com sal e açúcar no jantar, que duendes só existem na casa da Xuxa, que CD só toca de um lado, que Paulo Coelho e Hebe Camargo são mais apreciados em shows de Stand Up do que em suas carreiras, que ovo faz mal, faz bem, e faz mal de novo, que andar de bicicleta é perfeitamente esquecível, que barata pode sofrer de depressão, que mulher na presidência é como ter uma mulher na presidência, que infinito é muito na gramática e pouco na matemática, que banho de chuva é sempre mais gostoso quando se é criança, e que o Mote con Huesillo, do Parque Metropolitano de Santiago, é ruim demais. Ao longo de toda a subida da estrada do Parque, que possibilita aos transeuntes uma vista deslumbrante da cidade lá embaixo, notamos que as lixeiras em todo os cantos estavam repletas de latas de pêssego em

Augustin

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Lá estavam, todos ao redor da nuvem branca. As cores eram quase imperceptíveis, tal era a luminosidade da cena. As asas prontas para alçar voo, logo que desejassem. Quando, do meio da fumaça, surge uma figura, aparentemente forte, alta, pele negra, olhos muito atentos e... ― Aqui é álcool ou gasolina?  O ronco do motor assustou todos os pombos, que beliscavam suas migalhas ali pelo posto de combustível. O homem se aproxima, curva o corpo, põe as mãos na janela do carro e, com sotaque que mais parecia um nordestino tentando falar espanhol, nos dirige sua ensaiada cortesia:  ― Boa tarde, meu nome é Augustin, bem-vindo ao posto Decano , estou aqui para servi-lo, espero que tenha um ótimo dia.  Uso as vírgulas aqui por rigor gramatical, mas em favor da verdade mais verdadeira, não houve sequer separação fonética das sílabas. Toda a frase parecia uma única palavra. Resultado: "Sorry, can you repeat please?"  Augustin é do Haiti. Está em Santiago há três mese

Cavalo de Tróia

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Consumimos tecnologia ou ela nos consome?  A compra de qualquer produto dentro de uma casa, onde o que impera é a comunicação, importante é o poder do convencimento, mesmo sabendo que tal produto pode agradar mais a um do que o outro...  ― Mô, comprei umas panelas que são a nossa cara, modernas, práticas, esmaltadas e muito bonitas; cozinham nossas refeições em instantes, sem deixar queimar, enquanto fazemos outras coisas! Depois é só colocar o bife no grill e tá tudo pronto. Assim, teremos muito mais tempo um para o outro!  Temos aqui, uma "culinária de tomada", é só plugar! Ela convenientemente convence o marido a adquirir um par dessas praticidades, claro que com a preocupação de não ser taxada de preguiçosa, pois, tratando-se de forno e fogão, a sogra é uma excelente cozinheira, e totalmente avessa a tecnologias ― com muita dificuldade ainda aceita microondas para fazer pipoca de saquinho.  ― Claro, Vida! Quero você o mais longe possível da cozinha! 

Na veia

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― Foi lá que eu conheci. No Brasil. Uns amigos da faculdade me ofereceram uma pequena quantidade. Depois disso, nunca mais pude me esquecer. Fiquei viciado. Ah, o Brasil, e suas belezas inigualáveis! As praias que não conheci, as mulheres... sim, mulheres muito bonitas, se me permite dizer. É com todo o respeito! Mas aquela sensação ao provar o pó da paçoca, que eu praticamente injetava de tão ansioso que ficava para consumir o quanto achasse... aquela sensação eu não poderia ter em lugar nenhum do Chile. Depois da tentativa frustrada de almoçar Ceviche no primeiro dia em Santiago, a gente se deparou com um outro local popular chamado Mercado Central . O prédio por fora tinha bom aspecto e o movimento intenso indicava que lá acontecia algo digno de ser compartilhado. Entramos.  Estávamos certos. Muitas pessoas passando o domingo comendo e bebendo por ali. Era um salão enorme, de teto alto e antigo, um tanto danificado e empoeirado, cercado de restaurantes de todos os mod

O tempo dos 30

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― Tia, você fala muito difícil! E eu pensava que era a pessoa mais simples do mundo. É muito difícil encontrar quem nos entenda como nós mesmos. Isso às vezes nos faz muito solitários, agora está mais do que claro. Estaríamos menos sozinhos se fôssemos mudos? Talvez. Mas a linguagem é apenas uma dentre tantas coisas que já não compartilhamos. Por exemplo, a profissão de datilógrafa. Eu mesma fiz um curso achando que seria muito útil. Foi um sacrifício só. Passava o dia na escola apenas com um pão e uma garrafinha de água, esperando a hora da aula. Treinava numa Olivetti antiga, com as letras todas cobertas com corretivo branco. Tinha que aprender a digitar sem olhar o teclado. ― Tia, o que é isso? ― É uma máquina de escrever, criança. ― E onde é a tela que aparece o que a gente escreve? Pois é. Minha geração e a da minha sobrinha, mesmo tão próximas, já não se entendem direito e não vemos a mesma realidade. Mesmo mundo, outra rotação. Eu agora com 30 anos e ela com 14

Sugestão do chefe

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Acordamos. Nosso primeiro dia em Santiago, Chile. Saímos à rua com cara de turista perdido. Procurávamos algo para comer, pois era quase meio dia e não havia nada em nossos estômagos desde que embarcamos no último voo. Um longo caminho... Parados numa esquina, mapa nas mãos, olhar por cima dos carros em busca de letreiros que anunciassem um restaurante. Um senhor passa por nós e, a poucos passos, se volta: ― ¿Yo puedo ayudarlo?  ― Buscamos un lugar para comer.  O chileno aponta para uma construção à frente, atravessando duas largas avenidas e passando por uma ponte. Disse que lá era bom e barato, que no barzinho atrás de nós era caro, numa proporção de preço que conferia a um cliente aqui o valor que se serviam 100 clientes lá. Ora, era a indicação de um habitante! Fomos conhecer.  Era um mercado de frutas chamado La Vega, mas quase tudo estava fechado por ser domingo. Somente no segundo piso, que era o local onde se concentrava a "praça de alimentação&quo

Entrevista

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A fila se forma de maneira rápida e se dissipa com a mesma velocidade do lado de fora. Os agentes, altamente treinados, organizam com vontade toda aquela multidão e a empurra para dentro do edifício. Celulares, aparelhos eletrônicos de qualquer tipo, objetos cortantes, pontiagudos, armas de fogo, terroristas portáteis, tudo fica do lado de fora. Lá dentro, muita gente para organizar e mais ainda para ser organizada. Fila, muita fila: para passar no detector de metais, para chegar ao primeiro balcão, deixar o passaporte, depois pegar a senha, depois para esperar. Um amontoado de gente que teve de agendar o atendimento exatamente no mesmo horário (isso ainda não entrou numa era moderna mais inteligente, paciência!); um atrás do outro ainda para marcar as digitais e, enfim, a fila de espera para a entrevista.  Os momentos em formação militar são os mais lembrados. Observa-se tudo: o comportamento dos funcionários de crachá e rádio na mão; os cinturões que marcam e organizam o p

Última chamada

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Acho que todo mundo já passou por uma situação em que ouvimos uma coisa diferente do que está sendo dito. Verdade? Sabia! No meu caso, demorou um tempo para perceber. Precisei me dominar primeiro, conformar-me com pelo menos mais uma viagem de avião para, então, alcançar a mensagem obscuramente oculta por trás de todos aqueles informativos, que fatidicamente devem ocorrer em todos os voos, sejam para perto ou para longe.  E, se você ainda não se apercebeu da questão, o que é normal, já que estou contando isso com a linearidade de um bêbado caminhando com suas próprias pernas, vou levá-lo ao ponto da conversa em que meu cérebro, já esperto, enfim compreendeu os tais comunicados:  ― Senhores passageiros, bem-vindos ao voo 456, com destino a Brasília. ― É o que eu ouvi, mas não é o que estão dizendo. Certeza. O que querem mesmo que a gente entenda é o seguinte: "Se você não é desse voo e não está indo para esse lugar, caia fora agora mesmo. É sua última chance, não

Época genial

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Em uma ocasião de total despreocupação, sentei-me ao lado do meu professor de filosofia na faculdade, durante o intervalo do seminário semestral de Literatura e Cultura, proporcionado pela instituição de ensino que frequentei há uns anos. Ele era um senhor de moderados gestos, fala calma, tom sincero e sábio. Tudo nele combinava com um filósofo, pelo menos com um que eu idealizava. Ouvi-lo, mesmo contando o caso mais banal, era sempre um aprendizado, um mestre nato. Estávamos lá, olhando o movimento das pessoas e falando sobre programas de televisão em nossos dias. Muitas opiniões comuns, discursos surrados que ouvimos sobre exposição da violência, da imoralidade, da futilidade... essas coisas que estão aí na tela, é só ligar o aparelho e colocar em qualquer canal. O assunto evoluiu até chegarmos às personalidades inteligentes. Durante a conversa, concluí que eu tinha uma pontinha de tristeza por ter nascido numa época em que não se ouvia falar muito dos grandes gênio

Kramp

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Narro o fato como se fosse um filme rodando ao contrário. Naquele instante, corpo imóvel, cobertor a proteger quase tudo, apenas a cabeça de fora, parecia mais uma tartaruga, uma espécie de casulo, silêncio quebrado apenas por suspiros ofegantes, um pequeno filete desce pelo canto da boca, talvez pelo fato de ter dificuldades em respirar, os olhos apresentam algumas sequelas e estão revirados, como se estivesse entorpecido por alguma droga. Essa inércia deveria ser interrompida. Nesse caso, o uso de um desfibrilador fosse a solução. A primeira carga contrairia apenas uma das pernas, porém as outras cargas dariam mais resultados. Encolhe o corpo e começa a se debater, contorcendo-se todo, luta desesperadamente contra um forte choque vindo da parte inferior do corpo. Não sabe o que acontece. Ainda tonto consegue abrir os olhos, tudo escuro, algo está puxando. Será que é um sonho? Sente dor. Meu Deus! O que é isso? Engatinhando, tenta ficar de pé e perde o equilíbrio, apenas uma pern

Tempestade ou copo d'água?

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2012: o cinema já deu versão, os cientistas continuam as pesquisas, a população se divide entre arrumar as malas ou arranjar mais dívidas...  É o fim do mundo, segundo algumas certezas antigas e os acontecimentos naturais confirmam (ondas solares, terremotos, erupções vulcânicas, nova edição do BBB); são as profecias...  As religiões se preparam para o salvamento e para agradecerem o milagre no dia seguinte; nenhum pânico em massa substancialmente organizado, mas algumas massas entram em um pânico secreto... Vamos vender todos os nossos bens (dinheiro pode ser necessário), restabelecer velhos laços de amizade e familiares, perdoar, pedir perdão, comer tudo o que sempre quis, adiantar as férias (melhor ainda, pedir demissão), ou, simplesmente se plantar de frente à paisagem favorita e pensar seriamente naquela pergunta sem resposta, com a qual sofremos desde os tempos mais remotos, tal qual uma pedrinha no sapato que, por muitas vezes, causa-nos sérias irritações, e que

Água mineral

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Valtão chegou na roda com notícia de que tinha largado todos os vícios. Como o Valtão tinha mesmo todos os vícios, foi recebido com incredibilidade barulhenta. Vaias, risadas, “Tá bom” e “Conta outra, Valtão”. Mas Valtão estava sério. Para dramatizar sua nova disposição, pediu ao garçom:  ― Alberico: uma mineral.  Alberico hesitou. Servia a turma há dez, doze anos e nunca ouvira um pedido igual. Talvez tivesse ouvido errado.  ― Uma quê?  ― Uma mineral. Água mineral. Mi-ne-ral.  Alberico de boca aberta. Na falta de precedentes, precisava de mais detalhes.  ― Com ou sem gás?  Valtão não respondeu em seguida. Ficou olhando para Alberico, como se a resposta estivesse em algum lugar do seu rosto. Estava decidido a largar todos os vícios, começando pela bebida. Era um homem novo. Um homem que tomava mineral. Mas com ou sem gás?  ― Sem – disse Valtão.  Houve um murmúrio na mesa. O próprio Valtão se assustou com o que tinha dito. Água mineral sem gás

Ser educado pode causar longas esperas, descaso e coceira local

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Há quem diga que no tempo dos avós as pessoas eram mais formais e solidárias. É bem comum ouvirmos por aí que antigamente isso ou aquilo era melhor, e que hoje em dia todos os caminhos levam à desumanização de nossa espécie.  Pode ser. Não costumo tomar partido quando não sei minimamente do assunto, portanto não questionarei aqui se a educação era mais bem praticada e melhor recebida antes de eu nascer. Para falar a verdade, não me agrada muito a ideia de que depois que eu nasci algo ficou ruim. Não é uma ligação que ajuda muito na auto-estima, menos ainda na disposição em se envolver amigavelmente com os outros tripulantes dessa nossa era mal feita.  Repare só o desânimo de se passar a vida aprendendo e aprimorando um conceito como "ter educação para ser uma boa pessoa" e descobrir, aos vinte e tantos anos, que isso não serviu absolutamente para receber um mínimo de boa vontade e lisura do vizinho aqui do lado. Avaliando um caso recente de complicações ao e